A N A V A Z + P I L A R G A R R E T T

04.15.2020 - 04.29.2020

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A IDADE DA PEDRA de ANA VAZ / 2013 /16mm / color / som / 29' / ENG subs

Uma viagem para o extremo oeste do Brasil nos leva a uma estrutura monumental petrificada no Sertão Brasileiro. Inspirado pela construção épica da cidade de Brasília, o filme usa essa história para imaginar o contrário. “Eu olho para Brasília do mesmo modo que olho Roma: Brasília começou como simplificação extrema de ruínas”. Através dos vestígios geológicos que nos levam a este monumento fictício, o filme descobre uma história de exploração, profecias e mitos.

"Tão artificial como deve ter sido o mundo quando foi criado."

- Clarice Lispector, Brasília de Visão do esplendor (1962)

Essas são as palavras com que Ana Vaz introduz seu filme A Idade da Pedra, uma reflexão, na minha opinião, sobre as noções de artifício, mitologias nacionais e sobre a permanência material. Desde o princípio do século XX o projeto de criar uma nação brasileira se imaginou a partir de uma plataforma de ruptura formada pelo passado e, antes de tudo, pela rede europeia de poder.Depois do fim do período imperial Europeu, o Brasil não tinha muito: como a República Velha  sofreu, a primeira interação pós colonial enfrentou uma maior ampliação da insegurança política, social e econômica.

Abolição e queda da primeira organização estrutural, a escravidão, deixou um espaço geopolítico desesperado para entender os remanescentes de seu condenado passado. A solução, apresentada  pelos legisladores e reforçada pelos produtores culturais, foi eliminar a mancha das histórias dolorosas do Brasil do registro nacional, definir o povo Brasileiro em relação à uma visão da modernidade imaginada e atrativa, e progredir de uma versão purificada do passado para uma versão igualmente simplificada do futuro.

O Brasil moderno começou como uma nação sem história: a produção de um senso de " Eu Brasileiro" se baseava na negação do passado. Coube aos legisladores e aos contadores de histórias criar uma narrativa da identidade nacional onde não havia, à produzir um mito para uma grande civilização que não tinha relíquias antigas para  se apegar. Por tanto, se tornou uma questão mitológica, de artifício tornado permanente. "O Brasileiro não tem caráter", escreveu Mário de Andrade, "porque não possui  civilização nem consciência tradicional". Uma nação sem história está condenada à produzir uma. No lugar de um passado profundo, de restos de civilizações antigas cheias de orgulho, Brasil criou o seu próprio -  e seguiu adiante". No lugar de Roma, Brasília floresceu no cerrado, o grande laboratório da modernidade, um monumento às ideologias do momento, ao país eterno do futuro.

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Mas as pedras são as que contam a verdadeira história do Brasil. As pedras são a fundação da nação Brasileira, a base de sua história colonial e moderna, bem como de suas mitologias coloniais e modernistas. Brasil é uma nação de rocha, de diamante, ouro, ametista e peridoto. Dos limiares de pedra-sabão que levam às casas coloniais, locais de recreação para contemplação privada ou administração imperial. As pedras foram o motor do mundo colonial português e definiram o seu lugar na ordem global. Então veio o asfalto, os novos monumentos a serem ordenados, o progresso,  a propriedade da modernidade. A nova base para a identidade nacional brasileira se converteu na dominação de um território chamado "futuro". 

Mas essa história não se refere às pedras dos dinossauros, às serras de quartzito que se elevam acima das colinas de Minas Gerais ou aos poços das minas coloniais.Esta história não se refere às pedras dos povos indígenas do Brasil, divididos agora dentro de demarcações arbitrárias da era moderna, produtos de uma história sobre a qual não tinham controle; sobre a qual o mundo natural não tinha controle. Brasil não existia ainda, antes dessas fronteiras. Essas histórias de pedra são de uma época anterior.

Talvez possamos pensar no som da pedra batendo no ferro como o som da história do Brasil. O som de formões em uma pedreira, o som de martelos quebrando calcário, mármore, granito. Também o som de algemas, puxando ou arrastando ao longo de uma superfície lisa de pedra, enquanto os quatro milhões de escravos do Brasil lavavam as roupas de seus senhores em piscinas naturais, ou colocavam folhas de arenito nas estradas para transportar pedras preciosas, também elas mesmas puxadas pelos povos escravizados de poços profundos no subsolo.

Também é o som dos trabalhadores em trajes de neon, substituindo pedras de calçada na Rua Santa Clara em Copacabana, ou em qualquer calçada do país. O som do ferro golpeando a pedra pode ser a verdadeira história do Brasil, ressoando em toda a nação, pela manhã, ao meio-dia e pela noite. Uma paisagem sonora não reconhecida, um portal não reconhecido de períodos anteriores.

O som dos milhões de trabalhadores anônimos do Brasil. Os mineiros literais do passado negado do Brasil, os verdadeiros construtores do presente artificial do Brasil, os comerciantes que transformaram em material os monumentos para o futuro sempre inacessível do Brasil.   

Talvez a pedra, mais que narrativa nacional, mais que mitos, mais que arte ou literatura, conheça toda a história.

Pilar Dirickson Garrett

04.10.2020

traduzido por Silvia Cruz y Alessandra Boulos*


Pilar Dirickson Garrett é uma programadora e curadora das artes multidisciplinares, nascida no Brasil e reside em Nova York. A maior parte do seu trabalho concentra-se em interseções da história política brasileira, histórias de pensamento culturais e processos de nacionalização com a prática artística do século XX. Nos últimos dois anos, Pilar trabalha como diretora assistente da organização Cinema Tropical, principal apresentadora e divulgadora do cinema latino-americano nos Estados Unidos. Através do seu trabalho com o Cinema Tropical, fez parceria com organizações culturais como Cinema no Lincoln Center, o Centro de Estudos da América Latina e do Caribe da NYU, Anthology Film Archives, New York Botanical Garden, Brasil Summerfest e mais. Ela tem o mestrado em museologia e estudos latino-americanos na Universidade de Nova York.


Ana Vaz (1986, Brasília) é cineasta e artista. Sua filmografia crítica e especulativa é baseada em colagens experimentais de imagens e sons, descobertos e produzidos, para refletir sobre situações e contextos históricos e geograficamente marcados por narrativas de violência e repressão. O impacto do colonialismo e da ruína ecológica são, paralelamente ou simultaneamente, o pano de fundo de seus "poemas cinematográficos". Expansões ou consequências de seus filmes, sua prática também pode incluir escrita, pedagogia crítica, instalações, programas de filmes ou eventos efêmeros.

Seus filmes foram exibidos e discutidos em festivais de cinema, seminários e instituições como Tate Modern, New York Film Festival - Screenings, Berlinale - Extended Forum, TIFF - comprimentos de onda, IFFR, CPH: DOX, BFI, Cinéma du Réel , Flaherty Seminar, Doc's Kingdom e Courtisane. Exposições recentes incluem: 36º Panorama de Arte Brasileira: “Sertão” no MAM - Museu de Arte Moderna (São Paulo), “Metaarchivo 1964-1985: espaço para ouvir e ler sobre as histórias da ditadura militar no Brasil” no Sesc - Belenzinho (São Paulo), Profundidade de campo em Matadero (Madri), Jameel Arts Center (Dubai), "The Voyage Out: notas para um filme à ven" em Confort Moderne (Poitiers), "Ecologies of Darkness" em Savvy Contemporary (Berlim), Sonic Acts (Amsterdã), "The Voyage Out" na LUX Moving Images (Londres) e "The Voyage Out: Mediums" no Centre d'Art Ange Leccia (Oletta, Córsega). Em 2015, ele recebeu o Kazuko Trust Award, apresentado pela Film Society of Lincoln Center, em reconhecimento à excelência artística e inovação em seu trabalho sobre imagem em movimento. Ana também é membro fundador do coletivo COYOTE, juntamente com Tristan Bera, Nuno da Luz, Elida Hoëg e Clémence Seurat, um grupo indisciplinar que trabalha em ecologia e ciência política através de uma variedade de formas conceituais e experimentais


Todas as doações vão para artistas contribuintes.

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